Espera esperançosa



No momento em que o mundo se volta para dentro de casa e a grande aldeia parece espremer-se no espaço interno, volto ao Mirante, tentando olhar para além do nevoeiro que nos envolve a todos. 

Das nove semanas de quarentena, sendo que as duas últimas em total isolamento, deparei-me com as portas e janelas, sempre fechadas, por medo. Esse período coincidiu com a preparação e celebração da páscoa cristã, festa da vida nova.

“Era o primeiro dia da semana. Ao anoitecer desse dia, estando fechadas as portas do lugar onde se achavam os discípulos por medo das autoridades dos judeus, Jesus entrou. Ficou no meio deles e disse: ‘A paz esteja com vocês.’ Dizendo isso, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos ficaram contentes por ver o Senhor.” (João 20,19s)

O Ressuscitado ao se apresentar a comunidade, repete o padrão ministerial dos anos de caminho e vivência com os discípulos. Jesus era convidado, como no episódio do casamento em Caná da Galiléia, ou ele mesmo se convidava, como fez com Zaqueu, o cobrador de impostos. Também no caminho de Emaús, quando a frustração, fruto das duras experiências e do medo, impedia os discípulos de reconhecer o Senhor, ainda assim eles o convidaram para que ficasse e partilhasse com eles.

Isso tudo para dizer que a casa ou o interior é o lugar de encontro com Deus. Porém, quando o medo nos leva a esconder-nos, não deixando espaço para a intimidade, podemos experimentar algo muito diferente da fé. Nem a dúvida nos opõe a experiência da fé como o faz o medo. O medo causa paralisia.

Estar em casa é o melhor que se pode fazer quando as condições sociais nos permitem. É um gesto de corresponsabilidade, de cuidado um pelo outro e isso, por si só, justifica o estar ali dentro. Porém, existe também a possibilidade de comunhão entre os irmãos e a intimidade com o Senhor que nos acompanha, oferecendo-nos a paz.

O medo em excesso pode ser um sinal do divórcio entre fé e confiança. É fácil crer e manter a fé através dos ritos e celebrações que se multiplicam em todas as telas disponíveis. Mas não é tão fácil abandonar-se em Deus, confiando que Ele sabe de tudo e que tudo que dele provém se manifestará em bem. Isso exige um passo a mais na maturidade do discipulado. O medo que nos leva a reações instintivas é muito diferente daquele que nos paralisa ou nos aprisiona. Medo em excesso pode ser um sintoma também de doença.

A relação de confiança com Deus fica à prova nos tempos incertos.

No mesmo contexto pascal, se escuta a promessa de um outro Paráclito (paráklētos), o Espírito Santo. É Ele que nos defende, mas também é o que traduz em linguagem popular tudo aquilo que é difícil de entender. Sabemos que essa promessa se cumpre no seio da comunidade reunida. Não é difícil pensar que aqueles homens e mulheres ainda estavam trancados. E isso faz com que a experiência com o Espírito Renovador seja mais forte, pois ele vem como vento ruidoso em Pentecostes. A força de tal vento contra as portas e janelas velhas e fracas não pede licença, simplesmente entra. As janelas e portas não foram abertas por dentro e sim forçadas por fora.

A foto que acompanha esse texto é um olhar para fora. Mesmo que no interior esteja frio e escuro, o sol continua a brilhar do lado externo. A fragilidade da casa, das portas e janelas devem aumentar a confiança de que a verdadeira proteção vem do Senhor.

Em Maynooth, Irlanda, na primeira fase da quarentena.



Comentários

  1. Perfeito traduz tudo que estamos vivendo e me fez rever que é preciso ficar a sós com Deus, para se deixar renovar e voltar a ter fé e confiança de dias melhores

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  2. As vezes passo rápido pelo Mirante. Não comento mas bebo com sofreguidão cada palavra que ali está pois me acalmam o espirito e a ânsia da pressa.Agora me pergunto: pressa para o quê? se tudo hoje é tempo de espera do que virá. Como sempre o senhor faz as palavras dançarem à nossa frente apontando o caminho. Obrigada por me nortear a vida,mesmo sem saber que o faz.
    Continue aproveitando este hoje, este agora pois amanhã está se aproximando rápido.
    Fica na paz. E que o Sagrado Coração de Jesus o abençoe e acolha.

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  3. Uma verdadera síntesis do que muitos de nós estamos vivendo. Obrigado Anselmo um abraço cordial desde Bolivia

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  4. Meu querido amigo. Saudades de vc. Vc é um comunicador. Vc escreve com doçura e delicadeza, além de assertividade. É bom ler o que vc escreve. Que bom que vc voltou ao Mirante. Seus leitores agradecemos. Deus está conosco, por isto graças a Deus. Que exercitarmos nos interiorizar neste período de isolamento. Que nos aproximemos de Deus, de nós mesmos e dos queridos que habitam conosco. Que levemos aos nossos o melhor de nós mesmos com a ajuda de Deus.

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  5. Buenísimo!¡! Excelente Artículo!!!

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  6. Ótimo texto para reflexão. O q.mais me tocou foi qd falou desse medo inexplicável q.sinto não sei de quê.
    Acho q o dom de escrever e fotografar é genético. Obrigada pela ajuda. Saudades.
    Leila Coelho da Silva.

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  7. Ótimo texto para reflexão. O q.mais me tocou foi qd falou desse medo inexplicável q.sinto não sei de quê.
    Acho q o dom de escrever e fotografar é genético. Obrigada pela ajuda. Saudades.
    Leila Coelho da Silva.

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